Por trás da mágica da IA: o trabalho invisível que ninguém vê

A jornalista Karen Hao revela, no livro Empire of AI, os bastidores desconfortáveis da inteligência artificial — e mostra que nem toda tecnologia é inofensiva.

Quando você pergunta algo ao ChatGPT e recebe uma resposta estruturada, precisa e simpática em segundos, é fácil pensar: "uau, que tecnologia incrível".

Mas e se a gente dissesse que por trás dessa fluidez existe uma cadeia de trabalho humano intensa, silenciosa e muitas vezes traumática?

Pois é. A IA pode até parecer mágica. Mas não é.

O Império da IA

A jornalista Karen Hao mergulhou nesse universo e o resultado é desconfortável: milhares de trabalhadores ao redor do mundo foram (e ainda são) contratados para fazer o chamado "microtrabalho" que treina e modera os modelos de IA.

Eles classificam textos, assistem a conteúdos extremos, filtram discurso de ódio e abuso sexual. Tudo isso por um salário baixo, muitas vezes sem apoio psicológico e sem sequer saberem o que estão ajudando a construir.

O queniano Mophat Okinyi, por exemplo, passou meses lendo relatos de pedofilia para treinar os filtros do ChatGPT.

O impacto? Trauma, perda da relação com a esposa e uma dúvida que ecoa: "O que recebi em troca vale o que perdi?"

A autora Karen Hao, em entrevista à BBC. Foto: BBC / Divulgação

Este não é um caso isolado. Karen Hao realizou cerca de 300 entrevistas com executivos e trabalhadores precarizados, espalhados por diversos locais do planeta além do Vale do Silício, como Quênia, Colômbia e Chile.

A investigação completa está em seu livro livro Empire of AI (Império da IA, ainda sem edição no Brasil), lançado em maio.

Karen Hao é formada em engenharia mecânica pelo MIT e teve acesso privilegiado à OpenAI em 2019, quando ainda escrevia um perfil para a revista MIT Technology Review.

Código molhado: o custo ambiental da IA

Além do fator humano, vem a pegada ambiental. Para processar tantos dados, é preciso energia.

Muita.

E água.

Os data centers que sustentam serviços de inteligência artificial consomem milhões de litros de água e geram um gasto energético que rivaliza com pequenas cidades.

Esse alto custo energético foi o motivo pelo qual o Chile barrou a instalação de um data center do Google no país. Isso porque a instalação usaria mais água do que toda a população local em uma região com histórico de seca.

No Brasil, o governo lançou uma política para atrair esse tipo de infraestrutura com o objetivo de processar mais dados dentro do território nacional. Isso deve gerar custos ambientais e a questão segue: qual é o preço do progresso?

A ilusão da inevitabilidade

Empresas de tecnologia, especialistas e entusiastas dizem que a IA é "inevitável".

Mas, para Karen Hao, isso é uma narrativa estratégica: quanto mais usamos, mais dados elas têm. Mais poder acumulam. Mais difícil fica regular.

E mais inevitável fica. Não porque é, mas porque nós escolhemos tornar assim.

Ela ainda questiona: se existem modelos de IA abertos, com menor custo ambiental e mais ética no processo, por que não investir neles?

A autora Karen Hao, em entrevista à BBC. Foto: BBC / Divulgação

E o que fazer com isso?

Karen Hao não está aqui para dizer que IA é vilã. O que ela propõe, ao longo de Empire of AI, é uma mudança de perspectiva: parar de ver a tecnologia como algo neutro ou inevitável, e começar a enxergá-la como o que ela realmente é — um reflexo das escolhas, prioridades e contradições humanas.

Talvez o livro seja um alerta, mas talvez seja também um convite à curiosidade.

A mesma curiosidade que impulsiona o progresso também deve ser usada para questionar quem se beneficia, quem paga a conta e como dá pra fazer diferente.

Afinal, toda inteligência é construída. Inclusive a artificial.

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